terça-feira, 25 de novembro de 2014

O papel, o sucesso e os desafios da cerveja artesanal.

O amigo Elias Kuck esta cursando Agronomia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Na cadeira de Engenharia de Alimentos a turma terá de fazer um trabalho sobre cerveja, que vai abordar desde o plantio dos insumos até o engarrafamento.
Também vão destacar as micro cervejarias brasileiras, seu papel e relatar o sucesso das cervejas artesanais.
O Elias perguntou se eu poderia colaborar dando minha opinião sobre o papel, o sucesso e os desafios.

Fiquei muito feliz especialmente por dois motivos:

1° - Por esse trabalho estar sendo desenvolvido na UFRGS. Isso mostra o quanto as micro cervejarias e as cervejas artesanais vem ganhando destaque.
Há poucos anos atrás era praticamente impossível encontrar cerveja artesanal para vender, quem diria ser tema de um trabalho na Universidade.
Talvez muitos da turma ainda não conheçam as cervejas artesanais, no mínimo vão ficar muito curiosas e vão levar os conhecimentos para mais pessoas.
Que lugar melhor para difundir conhecimento que uma turma de Universidade?

2° - Por ser lembrado pelo Elias para falar sobre o papel das Micro cervejarias, seu sucesso e desafios.
Faço a minha própria cerveja artesanal como hobby, sou membro da Associação de Cervejeiros Artesanais do Rio Grande do Sul (Acerva Gaúcha) e dos Cervejeiros do Vale do Rio Pardo (CerVale Rio Pardo).
Não sou dono de micro cervejaria, mas falo com conhecimento de quem é muito ligado ao movimento cervejeiro e acompanha a anos o mercado em todos os aspectos.
Tenho muitos amigos no ramo, tenho visitado e conhecido micro cervejarias em vários estados brasileiros. Com isso tenho contato cervejeiros e empresários que compartilham seus cases de sucesso, queixas, erros e acertos.

Achei que seria interessante dar minha opinião já fazendo um post no Blog e assim tornar a leitura disponível para quem mais tivesse interesse.

Para entender o sucesso das cervejas artesanais é preciso fazer uma pequena análise histórica do mercado cervejeiro mundial.

Em 1985 na música "Geração Coca-Cola" a banda Legião Urbana cantava que "quando nascemos fomos programados a receber" influências dos EUA.

A influência dos EUA no Brasil não foram apenas nos "enlatados", mas nas cervejas também.

Cervejaria clandestina sendo esvaziada.   Imagens Google

De 1920 a 1933 vigorou nos EUA a Lei Seca que proibia a fabricação, o comércio, o transporte, a exportação e a importação de bebidas alcoólicas.
A intenção era reduzir o consumo de álcool e acabar com as Empresas que produziam. O que se viu foi uma procura ainda maior por produtos de alto teor alcoólico. O surgimento de fábricas clandestinas controladas por bandidos, contrabandistas e gangsters, que travavam verdadeiras guerras sangrentas pelo poder.







Fiscais eliminando cerveja clandestina



A corrupção era galopante, não haviam fiscais suficientes e tudo virou um grande caos.





O combate ao consumo de bebidas alcoólicas não era exclusividade dos EUA. Entre o final do século XIX e começo do século XX, em diferentes partes do mundo vários movimentos organizados e eventos aconteciam.
Esses movimentos influenciaram a cerveja e muitas coisas que existem hoje, como por exemplo o surgimento dos Pubs.

Alemanha devastada na Segunda Guerra Mundial

É preciso destacar também a primeira grande guerra, onde a preocupação era não utilizar grãos para a produção de bebidas a fim de evitar a escassez.

Já na Segunda Guerra Mundial o problema foi a devastação da Europa e dos principais produtores e fornecedores de malte e lúpulos.






Nos EUA primeiro passo para o fim da Lei Seca foi liberar bebidas com até 4% de teor alcoólico.

Com o cenário descrito acima, para estar dentro da legalidade era preciso se adaptar.
Era preciso abandonar as cervejas Ale (preferidas até antes da Lei Seca) e produzir cervejas de baixa graduação alcoólica para uma população que ficou mais de uma década praticamente só tomando refrigerantes.

O paladar da população para cervejas complexas tinha acabado.

Além da escassez das matérias primas base da cerveja, o milho era abundante e passou, junto com arroz, a ser utilizados nas bebidas como alternativa barata para substituição de malte.

O resultado podemos chamar de Lite American Lager.

Um estilo de cerveja leve, aguada, sem sabores de malte ou lúpulo, com baixo teor alcoólico e que precisa ser consumida estupidamente gelada para mascarar sabores indesejados da bebida, mas que dentro do estilo esses sabores são permitidos.

Opa...alguém se familiarizou com o termo "estupidamente gelada"?

Pois bem, esse estilo foi implementado no Brasil.
Certamente não só por influência dos EUA, mas também por força e imposição da grande indústria que concorre igual e deslealmente com as pequenas. E sob um pretexto de ser uma cerveja refrescante para matar a sede, uma "cerveja adaptada ao clima tropical do Brasil".
Não vou entrar no quesito de que os famosos cereais não maltados são substitutos baratos e sem qualidade de malte, não vou entrar em detalhes de quantidade e qualidade de lúpulos,
na opção por outros estilos, nem dos diferentes micro-climas do extenso território brasileiro ou qualquer outro argumento que derrubaria facilmente essa teoria de "cerveja adaptada ao Brasil".

O fato é que até poucos anos a população brasileira só tinha acesso a um tipo de cerveja, a Lite American Lager.

Se pegarmos todas as marcas das cervejas tradicionais que estão disponíveis no mercado, praticamente todas são esse estilo. No rótulo até muitas trazem "Cerveja tipo Pilsen", mas estão muito, muito, muito longe de ser uma Pilsen de verdade a ponto de que nem seriam chamadas de cerveja na Alemanha.

Hoje estamos vivendo uma revolução cervejeira graças as cervejas artesanais.

Essa mesma revolução aconteceu nos EUA a mais de 20 anos e podemos dizer vamos nos inspirar no que já aconteceu por lá, onde o mercado de cervejas artesanais já chega a 20% de participação no mercado.

Também vamos fazer a nossa revolução cervejeira, e já começou!!!

É fantástico apresentar uma cerveja diferente para pessoas que só conhecem as tradicionais e dizem que a X é a melhor, ou que só toma Y, ou que bom é Z que é mais barata...


Linha de envase cerveja Crystal (Grupo Petrópolis) Rondonópolis - MT


Diga-se de passagem que dentro da proposta, as cervejas tradicionais tem qualidade, são bons no que fazem, possuem um controle de produção fantástico, alta tecnologia empregada, garantem o mesmo produto em diferentes fábricas e uma capilaridade de distribuição impressionante.

Mas pecam em se limitar em produzir basicamente apenas um estilo de cerveja.




As pessoas quase não acreditam quando digo que todas as cervejas tradicionais são o mesmo estilo, umas melhores, outras piores, mas todas iguais e que num teste cego com várias só com sorte acertariam uma ou duas.
Se surpreendem quando digo que existem mais de 100 estilos diferentes e eles só conhecem um.

Tem uma frase que diz que o que é bom é fácil acostumar-se.
Comer e beber bem certamente são uns dos maiores prazeres da vida.

As palavras chave são: variedade e qualidade!!

Eu diria que o principal motivo do sucesso das cervejas artesanais é justamente conseguir surpreender os consumidores nessa lacuna gigantesca que existe de as pessoas poderem conhecer um estilo diferente do que as tradicionais oferecem.


As pessoas se encantam com o sabor de uma Red Ale, se deslumbram pelo perfume de uma IPA, se surpreendem com o gosto de uma WitBier, se encantam com a sutileza de uma Kölsch ou até mesmo enchem a alma ao degustar uma Pilsen Puro Malte.

O sucesso está diretamente ligado a qualidade e a variedade das cervejas que as micro cervejarias brasileiras tem oferecido aos consumidores.

O Mercado de cerveja artesanal do Brasil, mesmo com uma história curta, já tem grande destaque internacional.
As cervejas brasileiras conquistaram inúmeras medalhas nos principais torneios do mundo.
Diversos cervejeiros consagrados mundialmente vieram para o Brasil fazer produções colaborativas com as micro cervejarias brasileiras e alguns cervejeiros do Brasil foram fazer o mesmo fora do país.

A papel das micro cervejarias nesse cenário é mais complexo:

É preciso fomentar a cultura cervejeira;
É preciso educar o consumidor, explicar para ele o que ele esta consumindo;
É preciso participar de eventos, de feiras e festivais;
É preciso dar palestras em faculdades;
É preciso criar eventos;
É preciso fazer parcerias com restaurantes e promover refeições orientadas e harmonizadas;
É preciso conversar na mesa entre amigos sobre cerveja;
É preciso apoiar e compartilhar conhecimento com o movimento Homebrew, que são os maiores difusores da cultura cervejeira;
É preciso incentivar o consumo moderado, mas com qualidade (Beba Menos Beba Melhor);
É preciso ter canais de comunicação com os consumidores;
É preciso abrir as cervejarias e prepara-las para receber visitantes;
É preciso descriminalizar a cerveja;

Ou seja, é uma infinidade de ações que é preciso fazer, muitas vezes gastando e sem retorno imediato.

Não adianta montar uma planta cervejeira, fazer alguma cerveja básica, um espaço para festa em meio a cervejaria e deu.

Com o boom das cervejas artesanais vão surgir muitos oportunistas e aventureiros achando que o negócio é uma maravilha.
O mercado vai cuidar de selecionar as que vão sobreviver ou não. E eu garanto: vai sobreviver aquelas que se preocupam com a qualidade e são engajadas com o mercado cervejeiro como um todo.
Já visitei algumas que se preocupam mais com a dupla sertaneja que vai tocar nas dependências da cervejaria do que com a qualidade das cervejas produzidas.

Em contra partida, para as que primam pela qualidade e estão engajadas na revolução cervejeira do Brasil, dispostas a fazer tudo que "É preciso..." e muito mais, tenho certeza que vão ter muito reconhecimento do mercado consumidor e vão se destacar.
Todo esse barulho que estamos vendo a cerveja artesanal fazer no mercado é apenas o começo, é a pontinha do iceberg.



Acima eu disse que descriminalizar a cerveja era um papel das micro cervejarias, mas vou mudar isso e passar para um desafio.

É desafio para as micro cervejarias descriminalizar a cerveja.

A cerveja  tem uma imagem nada positiva na sociedade.
Graças a campanhas publicitárias ela esta associada a consumo exagerado, mulher pelada, verão, praia e futebol.
Está associada a tomar em latinha e jogar a mesma em qualquer lugar, ou tomar long-neck no bico.

Imagine a seguinte situação:
Você chega num restaurante relativamente bom e diz que quer tomar uma cerveja, nem precisa pedir a carta de cervejas, o garçom nunca viu isso.
Nem se arrisque a perguntar se tem alguma cerveja na pressão, isso o garçom nunca ouviu falar.
Só com muita sorte, ou até milagre, você vai encontrar uma cerveja artesanal.
Normalmente vai ter que escolher uma que provavelmente esta "pagando" as cadeiras, mesas, geladeiras e fachada do restaurante. As grandes indústrias que determinam dessa forma quais marcas o restaurante poderá vender (contratos de exclusividade onde o dono do restaurante não se preocupa com os clientes).
O garçom vai trazer a cerveja num porta garrafa possivelmente todo mofado.
O copo talvez não esteja engordurado, mas talvez seja aqueles que parecem mais um pote de requeijão.
Provavelmente a cerveja não vai harmonizar com nenhum dos pratos oferecidos pelo restaurante, mas ninguém se importa com isso (nem o dono do restaurante nem o chef).
Mas com certeza ela vai estar estupidamente gelada.

Agora vamos imaginar outra situação:
Você chega no mesmo restaurante (bom) e diz que quer tomar vinho.
Possivelmente o garçom vai trazer a carta de vinhos. Você analisa a carta, escolhe o vinho e não se assusta com os preços de R$50, R$60, R$70 (ainda imagina "é o preço").
O garçom traz a garrafa, um pano cuidadosamente dobrado sobre o braço e as taças. Abre a garrafa com todo o cuidado, da a rolha para você cheirar, talvez você não entenda nada de vinho, mas cheira a rolha (talvez só descubra se o vinho estiver azedo com isso), mas mesmo assim cheira e sinaliza positivamente com a cabeça para o garçom. Ele enrola o pano na garrafa e serve uma pequena quantidade no seu copo para degustar (novamente talvez você não entenda), você da uma bela cheirada no copo, gira a taça e observa as bordas, toma um pequeno gole, alguns segundos se seguem e você sinaliza positivamente para o garçom dizendo "pode servir".
Que fantástico todo esse cerimonial né? Que respeito a bebida e a quem a produziu. E certamente você vai conseguir pedir um prato que vai harmonizar com o vinho.

A cerveja e seus vários estilos oferecem uma infinidade de possibilidades de harmonização. Desde os pratos de entrada, pratos principais e até com sobremesas.
Não quero agora travar uma batalha de cerveja x vinho (quem sabe em outro post futuramente hehe), mas a cerveja consumida com moderação traz inúmeros benefícios para a saúde, até mais que o vinho com quantidades superiores de antioxidantes, vitaminas e fibras.
Não quero esse cerimonial para tomar a cerveja, mas temos muito que aprender com os produtores de vinho, desde apresentação a toda a mística que envolve o produto.

A cerveja tem que ser consumida de forma diferente. Ao degustar uma cerveja devemos utilizar nossos 5 sentidos:

Audição - Ao escutarmos a som da garrafa abrindo e nesse momento já podemos avaliar o nível de carbonatação da garrafa.
Na Alemanha é comum até colocar o copo próximo ao ouvido para escutar a espuma e as bolhas de CO² se desprendendo do copo.

Tato - É o contato com a garrafa e com o poco para avaliar sua temperatura.

Visão - É importante visualizar o rótulo e ler as informações nele contido. Com a cerveja servida é hora de visualizar a formação e a duração da espuma, a cor da cerveja.

Olfato - Que é obrigatório analisar numa cerveja artesanal, nas tradicionais não precisa fazer isso (nem deve, as vezes não vai ser muito agradável).
Pelo olfato é possível identificar nuances na cerveja gerados através das leveduras, do malte, do lúpulo, especiarias, métodos de maturação, dentre outros. Mas vai de notas florais e perfumadas a frutas cítricas, bananas, ameixas, café, dentre inúmeros outros aromas.

Paladar - É o grande momento da cerveja artesanal. É tomar sentindo o gosto, é tomar pensando, é tomar percebendo sabores que chegam a ser surpreendentes.

Mas vamos continuar falando no desafio para as micro cervejarias.

Algumas pessoas defendem que o maior desafio agora é criar o estilo brasileiro de cerveja.
Que seria o estilo do Brasil, nossa carta de apresentação para o mundo. Talvez com ingredientes típicos brasileiros.

Eu discordo, antes disso o desafio é fazer as pessoas experimentarem a cerveja artesanal, conhecer novos estilos e saber o que estão tomando.
Não adianta termos o estilo brasileiro de cerveja se esse ficar restrito a uma pequena parcela da população que conhece cerveja.
É preciso que grande parte da população ao menos saiba que existem outros estilos, que saibam o que é uma Porter, APA, Weiss, Amber Ale, Barley Wine, Tripel, etc.

Cerca de 98% dos consumidores de cerveja no Brasil só consomem as cervejas tradicionais e o desafio é justamente fazer essa parcela da população ao menos experimentar as artesanais.


Mas o maior desafio das micro cervejarias hoje no Brasil é sobreviver, isso mesmo SOBREVIVER!!

O desafio é pleitar uma tributação diferenciada, mais apropriada e justa para as micro cervejarias que hoje são taxadas igual as grandes indústrias que possuem ramificações em várias partes do mundo, capital gigantesco e acionistas. As micro cervejarias são controladas geralmente por pequenos e até micro empresários.

Algumas cervejas artesanais chegam a ter 70% do custo em impostos.

O custo da produção é infinitamente maior que das cervejas tradicionais.
As micro cervejarias produzem uma variedade muito maior de estilos, onde se utilizam maltes com diferentes graus de torrefação para adquirir nuances de diferentes sabores e colorações.
O custo por litro produzido é muito maior.
Não utilizam produtos e aditivos químicos para baratear ou acelerar a produção.
O número de pessoas empregadas por litro produzido é maior que das grandes indústrias, onde a maior parte do processo é totalmente automatizado.
Utilizarem matéria prima de qualidade muito superior e mais caras e tem seu custo fracionado numa quantidade muito pequena de litros produzidos.
Ainda fomentam o turismo e a economia regional.

É uma concorrência desleal.

Em países desenvolvidos as micro cervejarias são taxadas de forma diferenciada e as cervejas custam em torno de 40 a 50% a mais que as tradicionais. No Brasil esse valor chega a ser dez vezes superior.
Um primeiro passo seria a inclusão das micro cervejarias no Simples Nacional, o que vem sendo discutido. Mas esbarra na burocracia brasileira, na disputa de poderes e nas ações de lobby disfarçado das grandes cervejarias (Um levantamento de um repórter da VEJA - SP comprovou que em 2010 as grandes indústrias doaram de forma legal quase R$20 milhões para políticos).

Voltando para a música da Legião Urbana:
"Depois de 20 anos na escola, não é difícil aprender, todas as manhas do seu jogo sujo".
Mesmo sofrendo com lobby, financiamento "legal" de políticos, bloqueio de pontos de venda e concorrência desleal as micro cervejarias vem ganhando espaço e destaque com a cerveja artesanal pela qualidade e pela variedade de estilos.
Isso é uma resposta do mercado que esta cansando da imposição das grandes indústrias e querem um produto diferenciado.

Aos amigos que tiveram coragem de empreender no negócio eu só posso dar meu apoio de todas as formas que consigo e dizer que continuem e acreditem.
Quando Steve Jobs quis contratar o CEO da Pepsi John Sculley, (a Apple ainda era uma Empresa minúscula comparada com a Pepsi).
Ele perguntou:

"Você quer passar o resto de sua vida vendendo água com açúcar ou quer mudar o mundo?"

Vocês estão mudando o mundo, vocês estão oferecendo aos consumidores um produto milenar, mas que nunca tiveram acesso.

"Somos os filhos da revolução" cervejeira que esta apenas começando.
"Vamos fazer nosso dever de casa", cervejas de qualidade, "e ai então vocês vão ver suas crianças derrubado reis".

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